I. Introdução
Neste estudo, ver-se-á o por que da ideia da existência de "anjos da guarda" designados para acompanhar cada crente durante toda sua lida terrena não possuir sustentação bíblica; não está arrimada à Sagrada Escritura! Destarte, não pode ser resignada, mas combatida. Deveras, tal tradição dimana do período interbíblico (séc. IV a.C. - séc. I AD), um período de apostasia do povo judeu, concomitantemente com a escrita dos livros apócrifos e/ou pseudo-epígrafos, donde surgiram amiúdes de concepções errôneas, doutrinariamente falando.
Essa tradição da existência de "anjos da guarda" permeou vários séculos, e até hoje está presente em algumas denominações. Trata-se de uma total incompreensão da doutrina bíblica dos anjos ― angelologia ― e de "um vento de doutrina" que deve ser evitado (cf. Ef 4.14).
II. Quem São os Anjos? Quais as Suas Funções?
Consoante as Sagradas Escrituras, os anjos são criaturas espirituais (Cl 1.16), celestiais (Lc 22.43), imortais (Lc 20.36), assexuados (Lc 20.34,35), poderosos (Sl 103.20), numerosos (Dt 33.2; Dn 7.10; Hb 12.22; Ap 5.11) e mensageiros de Deus (1 Rs 19.5-7). Possuem uma autoridade delegada pelo próprio Jeová ― que lhes pôs por maiorais entre suas criaturas (cf. Sl 8.5; Hb 2.7; 2 Pe 2.11).
As Escrituras ainda informam-nos que existem os anjos bons e maus. Os primeiros sujeitam-se a Deus (Sl 103.20), sendo seus ministros (Hb 1.14). Os outros, por sua vez, são os anjos caídos, que não retiveram o seu principado (cf. Jd v. 6); antes, deram ouvidos a Lúcifer ― tradução da Vulgata latina para "portador da luz" (cf. Is 14.12) ―, aquele que transformou-se no arqui-inimigo de Deus e dos homens, e autor da perdição, do mal, do pecado e das trevas.
A bem da verdade, existem anjos que protegem os crentes. São enviados por Deus para nos livrar (Sl 91.11). Observam a nossa conduta cristã diária (cf. 1 Tm 5.21), e depois assistem perante Deus (Mt 18.10). Esses anjos estão presentes nas reuniões dos santos (cf. 1 Co 11.10), e alegram-se muito quando uma alma se rende a Cristo (Lc 15.7-10). Executam, quando designados pelo Divino, juízos contra os adversários da Igreja (cf. At 12.23), ou também contra crentes rebeldes (1 Cr 21.16). São, de fato, ministros de Deus que cooperam com aqueles que hão de herdar a salvação (Hb 1.14). São cooperadores na obra evangelizadora, não de forma direta (cf. 1 Pe 1.12), mas indiretamente; assim fizeram com Filipe (cf. At 8.26 e ss) e com Pedro (cf. At 10.1-7). São verdadeiros auxiliadores dos santos!
Entretanto, a ideia de que cada crente possui um anjo restritamente para a sua guarda não possui sustentação bíblica. Os anjos estão à mercê dos fiéis; contudo, somente obedecem ao Senhor (cf. Sl 103.20,21; 1 Pe 3.22), e não a nós. Por conseguinte, não são nossos "servos", ou "guardiões" exclusivamente nossos. Quem pensa assim está completamente equivocado, porquanto o testemunho das Escrituras não atesta isso! Os supostos "anjos de guarda", conjecturamente presentes em alguns textos bíblicos, não são o que é tão "conclamado" por muitos. Provar-se-á isso a seguir.
III. Resposta aos Textos Apontados pelos Defensores da Tese do "Anjo da Guarda"
De todos os textos apontados pelos defensores da tese do "anjo da guarda", três são os mais apresentados, os quais serão respondidos à luz da Palavra de Deus.
• Mateus 18.10: Vede, não desprezeis nenhum destes pequeninos, porque eu vos digo que os seus anjos nos céus sempre veem a face de meu Pai que está nos céus.
Este texto bíblico somenta realça e frisa a realidade de que os anjos cuidam dos filhos de Deus. A expressão "pequeninos", usada por Cristo, era utilizada por Ele regularmente para se referir a seus discípulos (cf. Mt 10.42; Mc 9.42; Lc 17.2, etc.). Ademais, analisando-se o contexto imediato da passagem em foco, vê-se que Cristo utilizou o termo "pequeninos" poucos versículos antes, para aludir aos discípulos (cf. Mt 18.6). Assim sendo, uma boa hermenêutica nos dirá que os "pequeninos" referidos por Cristo como recebendo um cuidado especial dos anjos trata-se dos próprios crentes.
Contudo, o texto em foco não diz mais do que isso. Devemos aprender a "não ir além do que está escrito" (1 Co 4.6). De modo algum o Senhor está aqui mencionando "anjos da guarda". Pelo contrário: aqui temos a informação de que os anjos estão na presença de Deus, adorando e louvando ao Pai, e não que cuidam individualmente das pessoas neste mundo.
• Atos 12.11-15: E Pedro, tornando a si, disse: Agora, sei, verdadeiramente, que o Senhor enviou o seu anjo e me livrou da mão de Herodes e de tudo o que o povo dos judeus esperava. E, considerando ele nisso, foi à casa de Maria, mãe de João, que tinha por sobrenome Marcos, onde muitos estavam reunidos e oravam. E, batendo Pedro à porta do pátio, uma menina chamada Rode saiu a escutar. E, conhecendo a voz de Pedro, de alegria não abriu a porta, mas, correndo para dentro, anunciou a todos que Pedro estava à porta. E disseram-lhe: estás fora de ti. Mas ela afirmava que assim era. E diziam: é o seu anjo.
O apóstolo Pedro havia sido liberto da mão de Herodes Agripa I (11 d.C. - 44 d.C.) por um anjo de Deus. Entrementes, a igreja reunida na casa de Maria ― mãe de Marcos ― orava com instância ao Altíssimo por Pedro, que estava batendo na porta. Rode saiu a escutar. Quando notou que era Pedro, alegrou-se e imediamente anunciou aos irmãos. Os crentes ouviram isso duvidando: pensavam que Rode estava alienada! Contudo, devido a sua relutância, mudaram de parecer: interpretaram aquilo como sendo o "anjo de Pedro" os visitando.
Conforme salientado na introdução, o pensamento de que existem "anjos da guarda" é uma tradição que dimana do período interbíblico ― os 400 anos que separaram a escrita dos dois testamentos ―, e que já vinha há tempo sendo embutida na mente dos judeus. A própria tradição judaica antiga havia incorporado essa concepção.
Segundo essa tradição, o suposto anjo da guarda assume a semelhança daquele que o acompanha. Sendo assim, quando os crentes interpretaram aquele que batia na porta como o "anjo de Pedro", eles apenas refletiram os resquícios da tradição judaica, donde vieram. Os primeiros convertidos foram judeus (cf. At 13.46). Oito mil judeus e prosélitos constituiam os primeiros fiéis (cf. At 2.41; 4.4). Portanto, deve-se observar que, como eles vieram do judaísmo, retiveram em suas mentes alguns dos vestígios da tradição judaica, dentre eles a ideia da existência de "anjos da guarda"; pois não há registro dos apóstolos ensinando essa tese aos fiéis.
Além disso, a ideia de que aquele que batia na porta era o "anjo da guarda" de Pedro não era consensual entre os irmãos. Rode ― uma jovem possivelmente criada na religião cristã, sem ter tido influências do judaísmo ―, conheceu a "voz de Pedro" e interpretou aquilo como sendo literalmente o apóstolo; ademais, ela anunciou que "Pedro estava à porta" (At 12.14). Isso mostra que nem todos criam na suposta visita do "anjo de Pedro" à casa.
Em síntese, o livro de Atos dos Apóstolos não tem por finalidade primária ser um tratado doutrinário, mas sim histórico. Tinha por objetivo narrar o desenvolvimento da Igreja do 1° século da Era Cristã. A narrativa fala, a grosso modo, do plano de expansão do Evangelho: Jerusalém, Judéia, Samaria e confins da terra (At 1.8). Por conseguinte, o livro cita eventos e histórias que ocorreram na Igreja Primitiva nessa sua missão, e que não são necessariamente regras, ou doutrinas. Lucas cita, por exemplo, que "os lenços e aventais de Paulo eram levados aos enfermos, e as enfermidades fugiam deles" (At 19.12), algo que limitou-se somente a Éfeso, e que não deve ser repetido nos dias atuais. No caso suprarreferido de Pedro, deve-se observar que Lucas apenas redigiu a fala daqueles crentes, e as suas respectivas interpretações sobre quem estava à porta ― que poderiam estar certas ou erradas. Tão somente isso! Quem utiliza desse texto para fundamentar a tese antibíblica de que existem "anjos da guarda" precisa ignorar várias regras hermenêuticas!
IV. Conclusão
Ficou provado, à luz das Santas Escrituras, que a tese que sustenta a existência de "anjos da guarda" é inconsistente e antibíblica; derivando-se da tradição, e não da Escritura. A Igreja de Colossos estava agasalhando sérios erros doutrinários — inclusive no que tange aos anjos (Cl 2.18) — devido à tradição, aos preceitos, e a doutrina de homens (cf. Cl 2.22).
Temos por certo de que a crença em "anjos da guarda" é um dos muitos mitos populares a respeito dos anjos; uma "tradição" que permeou até os nossos dias. Destarte, existe uma única maneira de demitologizar as fantasias populares a respeito dos anjos: voltar à realidade bíblica.