segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

ANJO DA GUARDA: MITO OU REALIDADE?



  I.     Introdução

   Neste  estudo,  ver-se-á  o  por  que  da  ideia  da  existência  de  "anjos  da  guarda"  designados  para  acompanhar  cada  crente  durante  toda  sua  lida  terrena  não  possuir  sustentação  bíblica; não  está  arrimada  à  Sagrada  Escritura!  Destarte,  não  pode  ser  resignada,  mas  combatida.  Deveras,  tal  tradição  dimana  do  período  interbíblico  (séc. IV a.C. -  séc. I AD),  um  período  de  apostasia  do  povo  judeu,  concomitantemente  com  a  escrita  dos  livros  apócrifos  e/ou  pseudo-epígrafos,  donde  surgiram  amiúdes de  concepções  errôneas,  doutrinariamente  falando.

   Essa  tradição  da  existência  de  "anjos  da  guarda" permeou  vários  séculos,  e  até  hoje  está  presente  em  algumas  denominações.    Trata-se  de  uma  total  incompreensão  da  doutrina  bíblica  dos  anjos  ―  angelologia  ―  e  de  "um  vento de  doutrina" que  deve ser  evitado (cf. Ef 4.14).  

  II.   Quem  São  os  Anjos? Quais  as  Suas  Funções?

   Consoante  as  Sagradas  Escrituras,  os  anjos  são  criaturas  espirituais  (Cl  1.16),  celestiais  (Lc  22.43),  imortais  (Lc 20.36),  assexuados  (Lc  20.34,35),  poderosos  (Sl  103.20),  numerosos  (Dt  33.2; Dn 7.10; Hb  12.22;  Ap  5.11)  e  mensageiros  de  Deus  (1 Rs  19.5-7).  Possuem  uma  autoridade  delegada  pelo  próprio  Jeová  ― que  lhes  pôs  por  maiorais  entre  suas  criaturas  (cf.  Sl  8.5; Hb 2.7; 2 Pe 2.11).  

      As  Escrituras  ainda  informam-nos  que  existem  os  anjos  bons  e  maus.  Os  primeiros  sujeitam-se  a  Deus  (Sl 103.20),  sendo  seus  ministros  (Hb  1.14).  Os  outros,  por  sua  vez,  são  os  anjos  caídos,  que  não  retiveram  o  seu  principado  (cf. Jd v. 6);  antes,  deram  ouvidos  a  Lúcifer  ―  tradução  da  Vulgata latina  para  "portador  da  luz"  (cf. Is  14.12)  ―,  aquele  que  transformou-se  no  arqui-inimigo  de  Deus  e  dos  homens,  e  autor  da  perdição,  do  mal,  do  pecado  e  das  trevas.   

     A  bem  da  verdade,  existem  anjos  que  protegem  os crentes.  São  enviados  por  Deus para  nos  livrar  (Sl  91.11). Observam a  nossa  conduta  cristã  diária (cf. 1 Tm 5.21), e  depois  assistem  perante  Deus  (Mt  18.10).  Esses  anjos  estão  presentes  nas  reuniões  dos  santos  (cf. 1 Co 11.10),  e  alegram-se  muito quando  uma  alma  se  rende  a  Cristo  (Lc  15.7-10).  Executam,  quando  designados  pelo  Divino,  juízos  contra  os  adversários  da  Igreja  (cf.  At  12.23),  ou  também  contra  crentes  rebeldes  (1 Cr  21.16).  São,  de  fato,  ministros  de  Deus  que  cooperam  com  aqueles  que  hão  de  herdar  a  salvação  (Hb  1.14).  São  cooperadores  na  obra  evangelizadora,  não  de  forma  direta  (cf. 1  Pe  1.12),  mas  indiretamente;  assim  fizeram  com  Filipe (cf. At 8.26 e  ss)  e  com  Pedro  (cf.  At  10.1-7).  São  verdadeiros  auxiliadores  dos  santos!  

    Entretanto,  a  ideia  de que  cada  crente  possui  um  anjo  restritamente  para  a  sua  guarda  não  possui  sustentação  bíblica.  Os  anjos  estão  à  mercê  dos  fiéis;  contudo, somente  obedecem  ao  Senhor  (cf.  Sl  103.20,21; 1 Pe 3.22),  e  não  a  nós.  Por  conseguinte,  não  são  nossos  "servos",  ou  "guardiões"  exclusivamente  nossos.  Quem  pensa  assim  está  completamente  equivocado,  porquanto  o  testemunho  das  Escrituras  não  atesta  isso!  Os  supostos  "anjos  de  guarda",  conjecturamente  presentes  em  alguns  textos  bíblicos,  não  são  o  que  é  tão  "conclamado"  por  muitos.   Provar-se-á  isso  a  seguir.  

   III.    Resposta  aos  Textos  Apontados  pelos  Defensores  da  Tese  do  "Anjo  da  Guarda"

      De  todos  os  textos  apontados  pelos  defensores  da  tese  do  "anjo  da  guarda",  três  são  os  mais  apresentados,  os  quais  serão  respondidos  à  luz  da  Palavra  de  Deus.




    

           



     

• Mateus  18.10:  Vede,  não  desprezeis  nenhum  destes  pequeninos,  porque  eu  vos  digo  que  os  seus  anjos  nos  céus  sempre  veem  a  face  de  meu  Pai  que  está  nos  céus.

     Este  texto  bíblico  somenta  realça  e  frisa  a  realidade  de  que  os  anjos  cuidam  dos  filhos  de  Deus.  A  expressão  "pequeninos",  usada  por  Cristo,  era  utilizada  por  Ele  regularmente  para  se  referir  a  seus  discípulos  (cf.  Mt  10.42;  Mc  9.42;  Lc  17.2,  etc.).  Ademais,  analisando-se  o  contexto  imediato  da  passagem  em  foco,  vê-se  que  Cristo  utilizou  o  termo  "pequeninos"  poucos  versículos  antes,  para  aludir  aos  discípulos  (cf.  Mt  18.6).  Assim  sendo,  uma  boa  hermenêutica  nos  dirá  que  os  "pequeninos"  referidos  por  Cristo  como  recebendo  um  cuidado  especial  dos  anjos  trata-se  dos  próprios  crentes.  

     Contudo,  o  texto  em  foco  não  diz  mais  do  que  isso.  Devemos  aprender  a  "não  ir  além  do  que  está  escrito"  (1  Co  4.6).  De  modo  algum  o  Senhor  está  aqui  mencionando  "anjos  da  guarda".  Pelo  contrário:  aqui  temos  a  informação  de  que  os  anjos  estão  na  presença  de  Deus,  adorando  e  louvando  ao  Pai,  e  não  que  cuidam  individualmente  das  pessoas  neste  mundo.  


•  Atos  12.11-15:  E  Pedro,  tornando  a  si,  disse:  Agora,  sei,  verdadeiramente,  que  o  Senhor  enviou  o  seu  anjo e me  livrou  da  mão  de  Herodes  e  de  tudo  o  que  o  povo  dos  judeus  esperava.  E,  considerando  ele  nisso,  foi  à  casa  de  Maria,  mãe  de  João,  que  tinha  por  sobrenome  Marcos,  onde  muitos  estavam  reunidos  e  oravam.  E,  batendo  Pedro  à  porta  do  pátio,  uma  menina  chamada  Rode  saiu  a  escutar.  E,  conhecendo  a  voz  de  Pedro,  de  alegria  não  abriu  a  porta,  mas,  correndo  para  dentro,  anunciou  a  todos  que  Pedro  estava  à  porta.  E  disseram-lhe:  estás  fora  de  ti.  Mas  ela  afirmava  que  assim  era.  E  diziam:  é o  seu  anjo.  

     O  apóstolo  Pedro  havia  sido  liberto da  mão  de  Herodes  Agripa  I  (11 d.C. -  44  d.C.)  por  um  anjo  de  Deus.  Entrementes,  a  igreja  reunida  na  casa  de  Maria  ―  mãe  de  Marcos  orava  com  instância  ao  Altíssimo  por  Pedro,  que  estava  batendo  na  porta.  Rode  saiu  a  escutar.  Quando  notou  que  era  Pedro,  alegrou-se  e  imediamente  anunciou  aos  irmãos.  Os  crentes  ouviram  isso  duvidando:  pensavam  que  Rode  estava  alienada!  Contudo,  devido  a  sua  relutância,  mudaram  de  parecer:  interpretaram  aquilo  como  sendo  o  "anjo  de  Pedro"  os  visitando. 

      Conforme  salientado  na  introdução,  o  pensamento  de que  existem  "anjos  da  guarda"  é  uma  tradição  que  dimana  do  período  interbíblico  ―  os  400  anos  que  separaram  a  escrita  dos  dois  testamentos  ―,  e  que  já  vinha  há  tempo  sendo  embutida  na  mente  dos  judeus.  A  própria  tradição  judaica  antiga  havia  incorporado  essa  concepção.

      Segundo  essa  tradição,  o  suposto  anjo  da  guarda  assume  a  semelhança  daquele  que  o  acompanha.  Sendo  assim,  quando  os  crentes  interpretaram  aquele  que  batia  na  porta  como  o  "anjo  de  Pedro",  eles  apenas  refletiram  os  resquícios  da  tradição  judaica,  donde  vieram.  Os  primeiros  convertidos  foram  judeus  (cf.  At  13.46).  Oito  mil  judeus  e  prosélitos  constituiam  os  primeiros  fiéis  (cf.  At  2.41; 4.4).  Portanto,  deve-se  observar  que,  como  eles  vieram do  judaísmo,  retiveram  em  suas  mentes  alguns  dos  vestígios  da  tradição  judaica,  dentre  eles  a  ideia  da  existência  de  "anjos  da  guarda";  pois  não  há  registro  dos  apóstolos ensinando  essa  tese  aos  fiéis.

       Além  disso,  a  ideia  de  que  aquele que  batia  na  porta  era  o  "anjo da  guarda"  de  Pedro  não  era  consensual  entre  os  irmãos.  Rode  ―  uma  jovem  possivelmente  criada  na  religião  cristã,  sem  ter  tido  influências  do  judaísmo  ―,  conheceu  a  "voz  de  Pedro"  e  interpretou  aquilo  como  sendo  literalmente  o  apóstolo;  ademais,  ela  anunciou  que  "Pedro  estava  à  porta"  (At  12.14).  Isso  mostra  que  nem  todos  criam  na  suposta  visita  do  "anjo  de  Pedro"  à  casa.
      
      Em  síntese,  o  livro  de  Atos  dos  Apóstolos  não  tem  por  finalidade  primária  ser  um  tratado  doutrinário,  mas  sim  histórico.  Tinha  por  objetivo  narrar  o  desenvolvimento   da  Igreja  do 1°  século da Era  Cristã. A  narrativa  fala,  a  grosso  modo,  do  plano  de  expansão  do  Evangelho:  Jerusalém,  Judéia,  Samaria  e  confins  da  terra  (At  1.8).   Por  conseguinte,  o  livro  cita  eventos  e  histórias  que  ocorreram  na  Igreja  Primitiva  nessa  sua  missão,  e  que  não  são  necessariamente  regras,  ou  doutrinas.  Lucas  cita,  por  exemplo,  que  "os  lenços  e  aventais  de  Paulo  eram  levados  aos  enfermos,  e  as  enfermidades  fugiam  deles"  (At  19.12),  algo  que  limitou-se  somente  a  Éfeso,  e  que  não  deve  ser  repetido  nos  dias  atuais. No  caso  suprarreferido  de  Pedro,  deve-se  observar  que  Lucas  apenas  redigiu  a  fala  daqueles  crentes,  e  as  suas  respectivas interpretações  sobre  quem  estava  à  porta ―  que  poderiam  estar  certas  ou  erradas.  Tão  somente  isso!  Quem  utiliza  desse  texto  para  fundamentar  a  tese  antibíblica  de  que  existem  "anjos  da  guarda" precisa  ignorar  várias  regras  hermenêuticas!       


    IV.  Conclusão

    Ficou  provado,  à  luz  das  Santas  Escrituras,  que a tese  que  sustenta  a  existência  de  "anjos  da  guarda"  é  inconsistente  e  antibíblica;  derivando-se  da  tradição, e não  da  Escritura.  A  Igreja  de  Colossos  estava  agasalhando  sérios  erros  doutrinários  — inclusive  no  que  tange  aos  anjos (Cl  2.18) — devido  à  tradição,  aos  preceitos,  e  a  doutrina  de  homens  (cf. Cl 2.22).

      Temos  por  certo  de  que  a  crença  em  "anjos  da  guarda"  é  um  dos  muitos  mitos  populares  a  respeito  dos  anjos;  uma  "tradição"  que  permeou  até  os  nossos  dias.  Destarte,  existe  uma  única  maneira  de  demitologizar  as  fantasias  populares  a  respeito  dos  anjos:  voltar  à  realidade  bíblica.






       



   



   

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